Quarentena

Diário de quarentena #1

É estranho pensar em como a vida muda as vezes de forma drástica para coisas que nunca havíamos imaginado, em um eu poderia andar livremente nas ruas, agora estou aqui presa em minha própria casa com um filho de 10 meses no braço chorando enquanto meu belo marido assiste seu canal de esportes favorito.

Eu me pego olhando pela janela diversas vezes ao dia a observar a vida dos outros que parece ser tão melhor que a minha, a Sr. Tereza do quarto andar que provavelmente já se aposentou, mas não tenho muita certeza disso, deduzi por que passa muito tempo em casa, alguém tem que pagar as contas e ela vive sozinha, talvez tenha um filho rico, mas se fosse mesmo rico não a deixaria em um apartamento de Cohab, eu não deixaria.

As vezes eu paro para observar a família que mora no segundo andar, Simone professora de educação infantil, seu marido Carlos administrador, e seus dois filhos Pedro e Laura, ao que tudo indica é uma família perfeita, não se ouve brigas ou discussões, não ficam de fofoca perto do estacionamento e os vizinhos não sabem o que acontece em suas vidas, mas eu sei por que eu vejo todos dias.

Simone acorda cedo e faz uma espécie de Yoga (deve ser Yoga mesmo) depois acorda todos na casa, primeiro ela coloca o Pedro no banho pois é mais preguiçoso que Laura, Depois Laura, Carlos e ela sempre por último e juntos preparam o café da manhã, uma família que parece ter saído de um comercial de margarina, precisa ver só todos sentados na mesa sorrindo e conversando, era assim na casa dos meus pais.

Eu invejo também a vida de Luisa do terceiro andar, acredito que ela seja meu espirito animal, ao que tudo indica deve ter uns 25 anos, é toda independente, mora sozinha sem filhos, sem namorado, trabalha em um museu de arte moderna no centro, tem estilo, tem gatos, faz academia, toda sexta chega pela madrugada (quando estou amamentando Henrique) chega com um homem bonito diferente, aos sábados bebe com as amigas em casa mesmo e aos domingos recebe a família para um almoço, parece estar sempre feliz e contente consigo mesma.

–  Bruna! Me trás um suco! – Um momento, preciso atender as necessidades fúteis do meu marido e colocar Henrique que já adormeceu no berço.

Vou até o quarto e coloco Henrique deitado já adormecido deitado de lado para e o cubro com sua pequena coberta, levanto a grade, acendo a luz noturna e vou para cozinha pegar o suco, olho a porta da geladeira onde tem pendurada diversas fotografias e um lembrete da consulta do Henrique no pediatra, abro a porta e pego o suco de amora que fiz mais cedo, despejo no copo do time favorito dele e levo até sua mão na sala, ele está com cara de bravo, o time deve estar perdendo então é melhor não falar nada apenas entrego o copo e saio.

Agora voltando as minhas observações sobre os vizinhos:

Não sinto tanta inveja da vida do Sr. Estéfano do primeiro andar, um idoso tetraplégico que mora com sua filha mais velha, e sofre todos os dias, sua rotina é triste de observar, pela manhã sua filha acorda primeiro e toma café assistindo TV, quando ele acorda ela o ajuda a tomar um banho, café e o leva para uma praça próxima ao condomínio para tomar ar fresco, as vezes faz o almoço, as vezes só compra um salgadinho para comer, ele fica em frente a TV o dia todo e a noite, ela o coloca para dormir sem trocar a fralda.

Agora que Henrique dormiu vou até a área de serviço, pego minha toalha, e vou para o banheiro tomar banho, penso se deixo a porta aberta ou não caso Roberto queira entrar para tomarmos banho juntos como antigamente, mas me lembro da última vez em que fiz isso e o mesmo entrou para fazer suas necessidades fisiológicas, fecho a porta então e tranco, vou tirando as roupas enquanto me olho no espelho, como meu corpo mudou, meu olhar, meus cabelos, será que a Bruna de antes ainda está ai dentro?

Abro um pouco a porta novamente, Henrique está dormindo e Roberto assistindo TV furioso com seu time que pelo visto está perdendo, será que se eu saísse agora e entrasse na frente da desse jogo idiota ele me notaria? O que aconteceu com a gente?
Desisto logo, me enrolo na toalha e passo logo para o quarto, coloco roupas limpas e estendo a toalha na área de serviço, quando vejo de relance pela janela Carlos o administrador extremamente bravo e agressivo, derrubando as coisas dentro do apartamento e gritando muito com Simone, as crianças estão trancadas no quarto enquanto Simone tenta acalmá-lo, mas ele está com os nervos a flor da pele e soca a parede criando um pequeno buraco, não consegui mais vê-lo, Simone ficou parada no sofá com as mãos no rosto, provavelmente saiu.

Vou checar Henrique como de costume, ele está bem, está dormindo, pego o livro que estou tentando terminar de ler a dias e sento perto de seu berço.

− Brunaaaaaaaa! Faz uma pipoquinha amor? – Mas uma vez, me desculpe por isso…

Depois de atender ao pedido de escrava sento novamente e finalmente volto a ler o livro que havia deixado de lado a tanto tempo, é uma dificuldade imensa ficar imersiva dentro da história que estou lendo, a poltrona não está muito confortável, sento na cama, mas a cabeceira não é muito confortável para minhas costas, coloco um travesseiro, o travesseiro não é o suficiente, vou para sala, não há como se concentrar com meu marido gritando com seu time de futebol, vou para a sacada e tento arrumar um espaço entre o andador e brinquedos do Henrique, enfim posso tentar fazer minha leitura tranquila.

Ler ao ar livre estava funcionando muito bem até a dona Tereza aparecer na sacada de sua casa desolada, a chorar descontroladamente, bem eu sei que não tenho nada haver com isso mas não há muito o que fazer nesse momento, eu me solidarizo com Tereza e quero ajudar de alguma forma, mesmo sem saber o que está acontecendo, me doeu no coração, sem pensar muito entrei novamente arranquei uma folha do caderno de desenhos do Henrique e comecei a escrever:

“ Senhora Tereza’

Não, não, ela pode se sentir ofendida ao ser chamada de senhora, senhora é para velha, amasso o papel e jogo no lixo, logo pego outro em branco.

“Senhora T”

Amasso novamente e jogo no lixo “ T”? De onde eu tirei isso? Nunca nos falamos, não temos intimidade para tanto.
Pego outro papel:

São Paulo, 28 de Abril de 2020

Querida Tereza,

Não a conheço tão bem como gostaria e sei que passamos por momentos difíceis, compartilhamos a dor da prisão com nós mesmos e com o que tentamos evitar nos dias normais com a correria.
Sei também que não é da minha conta o que acontece com você, mas me solidarizei ao te ver chorando na sacada e se quiser se abrir, estou aqui.

Com carinho, B

Apto 230

Finalmente fiquei satisfeita com o bilhete, dobrei e coloquei dentro do bolso da calça esperando ter coragem e oportunidade para colocar embaixo da porta de Dona Tereza.

− Bruna o bebê acordou!

− Já vou!

Sabe, eu já estava conformada e sabia que as coisas seriam assim quando me casasse, digo não é algo que deveríamos estar acostumadas mas geralmente as mulheres acabam ficando encarregadas pelas tarefas domésticas e os filhos, mas pensei, juro que por um momento, antes de tudo fantasiei que seria diferente comigo, que eu não deixaria isso acontecer, mas aconteceu.

Levanto como boa mãe que sou e vou até Henrique que já está ficando todo vermelhinho de tanto chorar, verifico se está tudo bem e o coloco para assistir um vídeo infantil no You tube até que se acalme, pego a carta novamente e penso se foi algo apenas passageiro para me aliviar no momento ou se deveria de fato entregar a bendita carta, vou mais uma vez na sacada para ver, Dona Tereza não está mais lá o que me preocupa ainda mais, sei que se pedir para meu maravilhoso marido seria negado tal favor sem nem mesmo hesitar, se sair de casa preciso de uma explicação plausível pois um bebê depende de mim.

Depois de muito tempo pensando, bolei o plano e parecia extremamente perfeito em minha cabeça, o leite está acabando, preciso comprar leite, É ISTO!
Fiz o almoço, nosso tradicional macarrão com almôndegas e para Henrique papinha de legumes, enquanto estávamos sentados à mesa me senti como uma criança que aprontou e precisa contar aos pais totalmente envergonhada e de forma embaraçada dei inicio ao meu plano:
− Acabou o leite do mercado! – isso não saiu exatamente como o planejado, por um instante até Henrique me encarava como se duvidasse da minha capacidade de continuar dando a sua papinha na boca.
− Eu quis dizer, acabou o leite e preciso ir ao mercado hoje, você poderia ficar com o Henrique um pouco para eu ir e voltar? – Roberto nem ao menos levantou a cabeça.
− Tudo bem, vamos, está acabando minha cerveja também, já vamos fazer uma lista e compramos tudo para pelo menos um mês. – Meu plano, meu belíssimo plano, perfeito plano estava desmoronando ali mesmo depois de cada passo que eu havia dado tudo muito bem calculado.
− Você tem certeza que precisamos de mais alguma coisa? Digo se for só leite e cerveja posso ir sozinha. − Ele então riu da minha cara como se eu estivesse contando alguma piada, bem de certa forma eu estava.
− Você não aguenta nem segurar o bebê por muito tempo, vai aguentar vir andando até aqui com um fardo de cerveja e outro de leite?
− Eu aguento – disse com convicção e ele caiu na gargalha.

Após a grande piada do meu almoço e ter limpado toda a cozinha, estava arrumada já em pé perto do balcão fazendo a lista de compras pensando como meu plano de ir até o apartamento da Dona T( pelo menos era assim que eu estava a chamando na minha cabeça, na minha cabeça temos intimidade o suficiente para isso) e passar o bilhete por debaixo da porta sem que meu marido humorista o suspeita-se.

Eu com a lista já pronta e sem nenhum plano infalível me apressei junto de Roberto que segurava a cadeirinha com Henrique e fomos descendo as escadas, passamos em frente ao apartamento de Dona T, minha mão segurou o bilhete com ainda mais força que antes dentro do bolso e por alguns segundos abaixei fingindo amarrar o tênis e estava prestes a retirar o bilhete do bolso quando por algum aviso de um demônio Roberto parou para me esperar ( coisa que não é de seu feitio).

Bem, levantei e fui me afastando logo com olhar com pesar para aquele apartamento e pensando em como talvez Dona T precisasse daquele bilhete, tanto quanto eu.

 

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